A Assembleia da República (AR) aprovou, no dia 18 de Julho, na especialidade, o Projecto de Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras. O documento segue para o Gabinete do Presidente da República que, por força do número 1 do artigo 163 da Constituição da República deve, num prazo de 30 dias, promulgar e mandar publicar no Boletim da República. Trata-se de um instrumento importante para a garantia dos direitos humanos da rapariga porque, segundo o economista e professor universitário, António Francisco, um país com altos taxas de uniões prematuras reflecte um nível muito baixo de desenvolvimento económico e humano. Por seu turno, Joaquim Oliveira Mucar, director de Advocacia Gestão de Conhecimento e Mobilização de Fundos na Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), explica que é que as uniões prematuras constituem um entrave ao desenvolvimento e sublinha que o País perde 62 biliões de Meticais anualmente (correspondentes a 10% do PIB) devido à desnutrição crónica.

 

António Francisco: uniões prematuras reduzem o desenvolvimento

António FranciscoAntónio FranciscoFale-nos dos efeitos das uniões prematuras no desenvolvimento económico do país.

Antes de falar do impacto das uniões prematuras no desenvolvimento económico convém perceber a sua razão de ser, ao longo de milhares de anos. Não foi por mera ignorância, ou vontade de usar e abusar da rapariga. Durante milhares de anos, enquanto as populações tinham uma esperança de vida à nascença que rondava os 30 ou 35 anos de idade, se a mulher não começasse a ter os filhos imediatamente após iniciar a puberdade, não haveria forma de garantir a reprodução humana. Tinham pouco mais de 15 a 20 anos para garantir ter o número de filhos suficientes que sobrevivessem ao elevado risco de mortalidade infantil. Numa situação de grande mortalidade, no final, a elevada fecundidade visava compensar esse défice.

Assim que a mortalidade começou a ser controlada, sobretudo a mortalidade infantil, começou a aumentar a idade mediana da população. Por exemplo, a idade mediana da população a nível mundial ronda os 30 anos de idade. Ora, em Moçambique, a idade mediana em vez de aumentar baixou de 19 anos em 1950 para 16,6 anos em 2017. Isto pode significar que a mortalidade infantil registou uma diminuição, aumentou a população infantil e adolescente, mas não surgiram condições para as adolescentes encontrarem motivos sociais e económicos para adiarem a idade de terem filhos e casarem. Portanto, o contexto social é muito favorável a que as famílias queiram casar as filhas o mais cedo possível. Ou seja, existem factos económicos, sociais e culturais favoráveis às uniões prematuras.

Infelizmente, não existem estudos socio-económicos que avaliem se o impacto das uniões prematuras é mais negativo do que positivo nas famílias rurais. Obviamente, para a rapariga, a pressão para se envolverem em uniões prematuras significa privá-la de investir na sua formação. Mas como a educação formal não aponta uma alternativa compensadora, em termos de retorno económico a médio prazo, por via de emprego, a tendência das famílias é continuarem a defender a união prematura.

 

Um país com elevados níveis de uniões prematuras tem ou não condições de atingir um alto grau de desenvolvimento humano?

Um país com altas taxas de uniões prematuras reflecte um nível baixo, muito baixo de desenvolvimento económico e humano. Contudo, à medida que o desenvolvimento humano aumentar, as uniões prematuras vão diminuir.

 

Qual é o impacto económico do crescimento da natalidade resultante de uniões precoces.

Penso que o impacto maior é a rapariga ficar privada e refém da maternidade, enquanto devia investir na formação profissional e aquisição de oportunidades de sustento mais promissoras do que cuidar dos filhos. Esses filhos que a jovem tem, em idade tão precoce, também irão sofrer a carência de recursos e oportunidade da mãe, principalmente se o arranjo em que ela fica envolvida é precário, ou até fica como mãe solteira.

 

Que ganhos económicos Moçambique pode obter se eliminar, na totalidade, as uniões prematuras?

Qualquer país que consegue realizar transformações económicas modernizadoras da economia rural acabará por reduzir e eliminar não só as uniões prematuras, mas também a maternidade precoce. As famílias passam a investir mais na qualidade em vez da quantidade dos filhos. Isso acontece quando a fecundidade transita progressivamente para níveis abaixo de cinco filhos por mulher. Isso já está a acontecer na cidade de Maputo, onde a fecundidade da mulher já ronda os três filhos por mulher.

Penso que um país com problemas de uniões prematuras não deve reduzir o assunto a uma questão de ignorância ou falta de conhecimento. Sim, a educação é crucial para que as pessoas percebam que a união prematura não é a via adequada para o bem-estar, mas simultaneamente devemos reconhecer que é fundamental ampliar as oportunidades dos jovens, sobretudo da rapariga, para poder encontrar alternativas economicamente mais viáveis à maternidade.

 


Oliveira Mucar: Moçambique perde 62 biliões de meticais/ano devido à desnutrição

Oliveira MucarOliveira MucarUma das consequências duma criança nascida de mãe menor é o fraco desenvolvimento. Haverá alguma relação entre um nascimento precoce e malnutrição?

Numa situação de união forçada o que temos, numa primeira instância, é a violação dos direitos humanos e, se quisermos, direitos da criança, pois a esta assiste-lhe o direito de protecção, o direito de alimentação, o direito à honra e dignidade, de crescer saudável e num ambiente são e livre, de estudar e de se desenvolver até a um nível em que pode fazer as suas próprias escolhas. A problemática de uniões prematuras pressupõe logo uma barreira ao desenvolvimento da rapariga, pois com a união prematura ela passa a desempenhar um papel de adulto, de tomar conta do lar e de assumir responsabilidades que constrangem o seu próprio crescimento e coarctam os direitos anteriormente mencionados. A rapariga tem, ao fim e ao cabo, de gozar da sua infância e adolescência de forma livre e justa perante a Lei.


Numa outra vertente, podemos afirmar que, numa união forçada, a consequência imediata, para além da violação dos direitos atrás mencionados, é a gravidez precoce. Precoce porque a rapariga ainda não reúne condições físicas, psicológicas e biológicas para gerar um filho e por essa via para cuidar, alimentar, educar e facilitar o seu crescimento. Ela ainda é criança, necessitando desses cuidados, não estando, por isso, em altura de assumir esse papel reprodutivo que é próprio de uma pessoa adulta e que tenha atingido um nível para o efeito apropriado. Porque a união prematura pressupõe, logo à primeira, gravidez e maternidade precoces, então podemos fazer um paralelismo forte entre uma união prematura e a desnutrição. Como? Uma gravidez requer alimentação adequada e balanceada, rica em nutrientes que vão permitir que a nova mãe possa sustentar a gravidez, da gestação até ao parto, passando pela amamentação do bebé até pelo menos aos 2 anos, período em que se completa o ciclo dos primeiros 1000 dias desde a gestação, cruciais para o desenvolvimento são e harmonioso da criança – o tal período crítico que, uma vez perdido, não há mais retorno, senão para um ciclo de desnutrição crónica do menino ou menina recém-nascido.


Biológica e fisicamente falando, porque a menina não está em condições para gerar e ter bebé, as consequências são várias e graves. Os riscos no decorrer do parto são enormes, desde anemia, desnutrição, podendo resultar na morte da mãe ou do bebé, com possibilidades inevitáveis de fístulas obstétricas com todas as consequências daí decorrentes, desde a discriminação social e contracção de doenças de vária ordem, incluindo as de transmissão sexual e o HIV.


Concluindo, qualquer união prematura acaba sendo um problema de desenvolvimento de capital humano que, por sua vez, está associado ao desenvolvimento sócio-económico. Por ser um problema sistémico e multifacetado, as suas soluções têm de ser igualmente sistémicas, multifacetadas, envolvendo questões culturais, sociais, económicas e de ordem jurídico-legal.

 


Um país com altos níveis de uniões prematuras tem ou não condições para superar o problema da malnutrição?

A união prematura obriga as meninas a deixar a escola, a começar a ter filhos antes da idade e do desenvolvimento do seu corpo, a viverem separadas da sua família, a servir o marido, a cuidar dos filhos. Tudo isto afecta o seu bem-estar físico, psicológico e emocional. Nenhum país no mundo se desenvolve sem um capital humano bem desenvolvido, isto é, uma população escolarizada e saudável, com índices de dependência reduzidos e condições ambientais salutares. Em suma, as uniões prematuras constituem entraves ao desenvolvimento e, sendo associadas à desnutrição crónica, representam um sério problema ao desenvolvimento do capital humano, essencial para o desenvolvimento sócio-económico e sustentável.

Basta dizer que o país perde cerca 10% da sua força de trabalho , e 62 biliões de Meticais anuais (correspondentes a 10% do PIB) devido à desnutrição crónica. Adicionalmente, 18.8% de casos de reprovações escolares estão associados à desnutrição e 1 em cada 4 casos de mortalidade infantil estão directamente relacionados com o mesmo factor. Ora isto é mais que suficiente para imaginar o quanto ficamos cada vez mais para trás em relação aos outros países da região e não só.

 

Qual é que pode ser o impacto de malnutrição numa criança que nasceu com problemas de saúde, como é o caso de baixo peso?

O baixo peso à nascença é um indicador claro de malnutrição, embora possa ser desnutrição aguda que, diferente da desnutrição crónica, tem tratamento, por via de suplementos nutricionais e alimentação rica em nutrientes. A crónica é aquela em que, ultrapassados os 1000 dias sem alimentação adequada, incluindo aleitamento exclusivo, não tem retorno. É uma sentença de inaptidão ao nível cognitivo, físico e produtivo para toda a vida.

 

Este artigo é da autoria da CECAP – Coligação para a Eliminação dos Casamentos Prematuros. A CECAP é composta pelas seguintes organizações:
ROSC, ACABE, Action Aid Moçambique, ADDC, AIRDES, ASCHA, MULEIDE, AMMCJ, Associação Solidariedade Zambézia (ASZ), Associação Wona Sanana, CESC, Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UEM, Comunidade Moçambicana de Ajuda (CMA), Coalizão da Juventude Moçambicana, COREM, Fanelo ya Mina, Fundação Apoio Amigo (FAA), FDC, Fórum Mulher, FORCOM, Girl Move Foundation, HACI, REPSSI, LeMusica, LDC, Linha Fala Criança, MEPT, WLSA, N’weti, Plan International, Pathfinder International, RECAC, Rede da Criança, Rede HOPEM, Save the Children, SOPROC, Terre des Hommes Itália, Terre des Hommes Schweiz, VSO, World Vision Moçambique, Young Women Christian Association, Associação Jovem para Jovem (AJPJ), AMODEFA, AGCD, Associação Progresso, REPROCRINA, UATAF-AFC, ChildFund, FHI360, Malhalhe, Nova Vida, AMPARAR, Right to Play, H2n

 

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