Campanha "SOU NTAVASE: Fui Violada, Exijo Justiça!"Campanha "SOU NTAVASE: Fui Violada, Exijo Justiça!"SOU NTAVASE é uma campanha Contra a Violência Sexual levada a cabo pela Associação Sócio Cultural Horizonte Azul – ASCHA em parceria com a WLSA Moçambique e o Fórum da Sociedade Civil para os Direitos da Criança – ROSC.
O Fórum da Sociedade Civil para os Direitos da Criança – ROSC, convida ao Internauta a viajar pela Terceira Parte da História (verídica) do Caso NTAVASE.


                                                                            IIIª PARTE
                                                      Fui violada, exijo cuidados e justiça

                                           A lei e o silêncio cúmplice de algumas instituições

A primeira parte da história do crime praticado contra a Ntavase emocionou-nos e levou-nos a criar esta aliança informal e a Campanha contra a violência sexual. Continuando a explorar a sua história, encontramos algumas pistas para a acção. Nomeadamente porque as instituições que deveriam proteger as vítimas e criminalizar os agressores nem sempre funcionaram de acordo com o seu mandato.


É de notar também que algumas dessas instituições actuaram sobretudo porque foi possível, através da aliança desenvolvida em torno desta campanha, influenciar pessoas que por sua vez intervieram para que Ntavase tivesse algum apoio médico e psicológico.
Vamos pois continuar a explorar a história deste crime.


                                            O silêncio da educação e da acção social
Dias antes do segundo internamento, a mãe da Ntavase comunicou à Escola que por questões de saúde e de tratamento, a menina não se poderia fazer presente na sala de aulas e nem no recinto Escolar por alguns dias, pois estava prestes a ser internada no hospital no sentido de ser submetida a um tratamento de hemorróidas. Entretanto, a escola (professores, directores e colegas), responsável por transmitir conhecimento e cuidar da/os seus aluna/os não se aproximou para saber como estava a menina, se esta precisava de algum apoio pedagógico, até mesmo de solidariedade, uma vez que sabemos que a instituição conhecia as verdadeiras causas das faltas da sua educanda. Uma vez que a escola também tem um papel importante na manutenção e retenção das raparigas na educação, no combate às uniões prematuras e violência sexual, sentiu-se um total desinteresse pela aluna que faltava regularmente. No que tange à Educação ao nível macro, que para além de garantir o ensino e aprendizado das crianças também tem um programa de género. No entanto, este igualmente não se aproximou para conhecer melhor a história de Ntavase e apoiá-la.


Concernente à Acção Social, após o segundo internamento, uma funcionária do Instituto Nacional da Acção Social (INAS) efectuou uma visita à residência da Ntavase, onde foi recebida pela mãe. Segundo ela, visitou a família em nome dos seus superiores (sem mencionar nome ou posição). Este solicitou que a mãe contasse de novo como tinha acontecido a violação e se estavam a receber algum apoio. A mãe mostrou uma parte dos produtos que tinha recebido da campanha Somos Todas Ntavase. Segundo a mãe, por algum momento, sentiu alívio ao perceber que podia receber algum apoio. Mas para sua decepção, o INAS não voltou a entrar em contacto com a família e não ofereceu qualquer tipo de ajuda.


É da competência do INAS implementar e promover programas de assistência social directamente a indivíduos impedidos de satisfazerem por meios próprios, temporária ou permanentemente, as suas necessidades básicas, bem como contribuir para o aumento da cobertura e protecção social básica. Ntavase e sua família enquadram-se no público-alvo da instituição. Entretanto, até o momento nada foi feito por parte do INAS para amenizar o sofrimento da família.


No que tange ao processo judiciário, este está sob tutela da justiça e o violador encontra-se detido na Penitenciária de Máxima Segurança, vulgo BO. Ora, tanto a mãe como a avó querem que a justiça seja feita e que o violador seja condenado e tenha a pena máxima, sem direito a perdão, nem caução, pois para elas e para tantas mulheres que acompanham o caso, estes crimes não deviam ser caucionáveis.


                               Repensando o crime de violação sexual de menores e a legislação maçambicana: entre o escrito e a prática

A legislação moçambicana prevê que o protocolo a ser seguido em caso de violação sexual inclua um atendimento rápido nos serviços de urgência da unidade sanitária mais próxima. Logo no início do atendimento, a vítima deve ser tratada com respeito, cuidado, confidencialidade, e receber um atendimento integrado, que inclui tratamento médico, apoio psicológico e assistência médico-legal.


No entanto, apesar do referido protocolo, muitas vezes as vítimas de violação sexual não recebem o atendimento hospitalar adequado. No caso de violação sexual que expõe a vítima ao risco de gravidez indesejada e a infecções de transmissão sexual, como o HIV, ela deverá ser imediatamente submetida à profilaxia pós-exposição para reduzir os riscos. Ntavase não passou por qualquer tipo de tratamento, revelando a fragilidade e total negligência do Sistema de Saúde. A pequena Ntavase recebeu alta sem indícios de melhoria, o que deixou a mãe e a avó revoltadas com o tratamento dado no hospital e não conseguiam conviver com o sofrimento da menina.


Dados estatísticos do país indicam que três em cada dez mulheres sofrem violência sexual diariamente. De acordo com a Polícia da República de Moçambique, em 2019, só na cidade de Maputo, foram registados mais de 200 casos de violação sexual, dos quais 42 ocorreram com menores de 12 anos de idade. Estes são os números conhecidos pelas autoridades. Entretanto, devido ao medo que se tem dos violadores, falta de informação e estigma na comunidade, muitas vítimas não denunciam, pois a violência de género é estruturante da sociedade, usando o medo e o estigma como uma das suas ferramentas.
O Artigo 393 do Código Penal de 2014, refere que:
“Comete o crime de violação aquele que tiver cópula ilícita com uma mulher, contra a vontade dela, por meio de violência física, veemente intimidação, ou de qualquer fraude, que não constitui sedução, ou achando-se a mulher privada de uso da razão ou dos sentidos”.
Já o artigo 394 considera que:
“Aquele que violar um menor de 12 anos, posto que não prove nenhuma das circunstâncias no artigo antecedente, será condenado a pena maior de 8 a 12 anos de prisão”.
No caso de crime praticado contra qualquer mulher, a pena aplicável é de 2 a 8 anos de prisão. Penas consideradas pequenas face à barbaridade dos crimes de violação sexual, sendo que normalmente as penas se situam no limite inferior destas molduras penais.


Questões ligadas à sexualidade são vistas como assuntos privados, pelo que muitos crimes cometidos neste âmbito ainda são tratados ao nível familiar ou comunitário. A mãe da Ntavase revelou que antes devia ter ido ao chefe de quarteirão para informar sobre o caso, mas não o fez por receio de que a filha sofresse algum tipo de preconceito e discriminação no Bairro.


Frequentemente, os crimes sexuais são vistos como crimes contra a honra da família e não são denunciados. Por isso, muitas vítimas se calam por temer serem mal vistas e serem acusadas de envergonhar a própria família. Em Moçambique, ainda são poucos os casos de violência sexual denunciados aos sistemas judiciais. Muitos casos são tratados de forma particular ou informal.


É preciso pôr um ponto final nos crimes de violência sexual. É igualmente urgente desconstruir e combater de forma vigorosa os valores que justificam e legitimam todas as formas de violência contra as mulheres. É preciso denunciar os agressores e apoiar as vítimas, em vez de as ostracizar. As vítimas precisam ser acarinhadas e não condenadas, pois em uma situação de violência (sexual), a vítima nunca é culpada, o culpado é o violador! Quando condenamos as vítimas de violência, elas tornam-se vítimas duplamente: primeiro, vítimas da violação e, segundo, vítimas da condenação que configura também uma outra violação. Temos que dizer basta, o mundo não pode continuar tão hostil e injusto para as mulheres e crianças.


Por este motivo, perante este caso que aqui expomos, há que questionar antes de mais as instituições de saúde, que falharam no atendimento médico e na administração da profilaxia pós-exposição. Por uma sorte inaudita, o agressor não deveria estar contaminado, pelo que o teste do HIV deu negativo. Mas podia não ter dado e tudo seria ainda mais difícil na vida de Ntavase.
Por esta negligência ou falta de conhecimento, há que pedir responsabilidades às pessoas que atenderam a vítima e se eximiram de aplicar o Protocolo Médico previsto na Lei, contra todas as recomendações do sector.


                                             Como é que a sociedade deveria ter apoiado Ntavase
Há coisas que parecem normais, mas que estão a ser roubadas a Ntavase: o direito de viver uma infância despreocupada, o direito de voltar à escola e estudar sem medos, o direito a uma assistência médica e psicológica adequada, o direito a uma justiça que deve ser acompanhada pela penalização do criminoso, o direito de ser reintegrada num ambiente familiar de paz e segurança. O direito de sonhar e de ser feliz.


Em Moçambique os crimes sexuais são tratados como ataques contra a honra da família, o que abre espaço para que a comunidade, consciente ou inconscientemente, se transforme em cúmplice dos crimes, uma vez que estes são tratados de maneira informal com a mediação das autoridades comunitárias (líderes comunitários, chefes dos quarteirões, líderes religiosos). É preciso por um ponto final a esta cumplicidade. Os membros da comunidade e as autoridades locais devem cuidar e apoiar as vítimas de violação sexual e desencorajar tais actos, em colaboração com outras entidades competentes.


Que Ntavase cresça feliz e alegre é o que todas as pessoas de bem desejam. Que se faça justiça e a pequena guerreira, em representação de tantas Ntavases, espalhadas por este país fora, que todos os dias são violadas sexualmente, tenha um final feliz. E que nenhuma criança criança mais passe por este inferno.
A menina Ntavase é uma sonhadora, na escola gosta da disciplina de Português e quer ser médica para cuidar de outras crianças como ela. “Quando vejo alguém a cuidar de uma criança fico emocionada, por isso quero ser médica”, revela Ntavase, de forma tímida. Esperamos que os sonhos da pequena guerreira se realizem.
Mais uma vez, é preciso falar e agir sobre a violência sexual e cuidar da criança, rapariga e mulher sobrevivente em Moçambique.


Viva a Ntavasse, a guerreira!

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