Em Julho de 2019, a Assembleia da República aprovou, por unanimidade e aclamação, a Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras. Trata-se da Lei número 19/2019 de 22 de Outubro, que define o quadro jurídico de proibição, prevenção, mitigação e combate às uniões prematuras, além de estabelecer a idade mínima de 18 anos para as uniões que visam o propósito imediato ou futuro de constituir família.


Recorde-se que, segundo o Inquérito Demográfico e de Saúde (IDS, 2011), Moçambique é um dos países com taxas mais altas a nível mundial de casamentos prematuros, ocupando o 10º lugar, e o 2º lugar ao nível da África Austral.
O inquérito refere que cerca de 48% de mulheres com idades compreendidas entre 20 e 24 anos estiveram numa união conjugal antes de 18 anos e 14% antes de completar 15 anos.
A Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras é iniciativa da Assembleia da República liderada pela Comissão dos Assuntos Sociais, do Género, Tecnologias e Comunicação Social (3ª Comissão) em parceria com Coligação para Eliminação das Uniões e Casamentos Prematuras (CECAP) na altura, sob coordenação do Fórum da Sociedade Civil para Direitos da Criança (ROSC).
Dois meses após a aprovação da Lei de Prevenção e Combate as Uniões Prematuras, o mundo é assolado pelo surto do novo Coronavirus causador da doença Covid-19. A pandemia da Covid-19, cujo primeiro caso, em Moçambique, foi registado no dia 22 de Março, havendo registo de mais de 1300 casos até à data, poderá inviabilizar a implementação desta lei e colocar em perigo a realização dos direitos crianças e, particularmente, das raparigas.

Com o aumento do nível de infecções, o Governo de Moçambique viu-se forçado a adoptar um conjunto de medidas restritivas e limitativas de direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos. As consequências negativas das restrições decretadas pelo Governo incidem mais sobre a mulher e sobre a rapariga e crianças, quer sob ponto de vista de sustentabilidade económica, bem como nos direitos atinentes à dignidade da pessoa humana. Estudos e experiências de vários países no mundo mostram que em situação de crise ou de emergência, os sistemas de protecção da criança, em particular da rapariga, ficam mais fragilizados e como consequência muitas perdem ou ficam sem os seus pais e mais expostas a pobreza, à doença, ao analfabetismo, à insegurança alimentar, a violência doméstica, a exploração sexual, as uniões prematuras, e a práticas tradicionais prejudiciais.

“Para dez milhões de crianças de Moçambique que já vivem nalgum tipo de pobreza, a Covid-19 significa uma pobreza mais extrema e prolongada e a negação dos seus direitos fundamentais. A crise da Covid-19 é uma crise dos direitos das crianças” .

Massingir: o exemplo da ameaça
Se a adopção das imposições resultantes da Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras era um desafio enorme para a população do distrito de Massingir, província de Gaza, a pandemia da Covid-19 poderá complicar ainda mais a implementação desta Lei.
Massingir é considerado um dos distritos que mais casos de uniões prematuras regista na província de Gaza. As lideranças comunitárias dizem que o mal deriva de práticas culturais e da pobreza. Com a pandemia da Covid 19 e os impactos negativos a si associados, esta situação pode ficar muito mais dramática.

“Infelizmente, aqui no distrito, temos uma realidade bastante complicada, em que crianças tornam-se mães de outras crianças, algumas vezes com anuência dos pais e, noutras situações, os menores são aliciados com bens materiais e envolvem-se com adultos acabando por engravidar. Tememos que, com esta pandemia, a situação venha a piorar na medida em que as crianças estão em casa e com os pais sem recursos para garantir o seu sustento”, disse Jorge Mathe, líder comunitário do povoado de Matxinguetxingue.
Romualdo Matusse, representante da Associação dos Médicos Tradicionais (AMETRAMO), revelou que há pessoas que contraem dívidas e, na incapacidade de salda-las, usam as filhas como moeda de troca.
“Submeter menores de idade aos casamentos sempre foi uma prática aqui no distrito. Diria que é uma prática antiga cuja erradicação vai precisar de esforço de todos nós. Com o apoio do Governo e da sociedade civil estávamos a conseguir controlar a situação, agora, com os problemas criados pela Covid-19, não sabemos se vamos conseguir vencer esta luta”, lamentou Matusse.

Cafitória Zunguze, responsável pelo Gabinete de Atendimento a Mulher e Criança no Comando Distrital da PRM em Massingir, contou que, no distrito, dificilmente se pode falar de uniões prematuras sem fazer a conexão com a pobreza.
“Muitas vezes, há uma relação directa entre os dois males. É que, na maioria das vezes, as pessoas com algum poder económico aliciam toda gente, desde as raparigas, os pais, líderes comunitários e até aos secretários dos bairros. As raparigas ambicionam viver numa casa de alvenaria, com duas, três viaturas, mesmo que para tal seja a quarta esposa.
O mesmo acontece com os pais e os encarregados da educação que ignoram o futuro da rapariga porque o mais importante é viver bem naquele momento”, explicou.
Zunguze contou que grande parte das comunidades que vivem no distrito de Massingir são pobres e, quando aparece alguém com dinheiro a pretender uma menor para casar, os pais cedem sem questionamentos e escondem o acto as autoridades.
A nossa fonte teme que todos ganhos que vinham sendo conquistados com a sensibilização feita pela sociedade civil e com a implementação da Lei 19/2019 fracassem devido a pandemia da Covid-19 porque a pandemia desocupou a rapariga que já não vai a escola ou não participa em campanhas de educação além de muitas famílias estarem a empobrecer cada vez mais devido ao encerramento das fontes de renda.

Sérgio Moiane, administrador de Massingir, olha as uniões prematuras como entraves ao desenvolvimento do distrito, mas que é um mal facilmente aceite pela sociedade local. Diz, por exemplo, que, em 2019, mais de 250 raparigas desistiram da escola devido as uniões prematuras.
No entender de Moiane, é urgente que o povo de Massingir se livre deste imbróglio sob o risco de retardar ainda mais o desenvolvimento da rapariga e do distrito.
“Como cidadãos devemos saber que a criança não é moeda de troca. O lugar da criança é na escola. O Governo vai continuar a envidar esforços no sentido de garantir o respeito pelos direitos da criança e os prevaricadores serão devidamente punidos pelos seus males”, disse.
Recordou que, no caso concreto do seu distrito, há algumas práticas tradicionais que também incentivam uniões antes da idade desejada.
“Já identificamos o problema, agora precisamos de encontrar soluções. Queremos que toda gente contribua nesta empreitada. Toda sociedade deve se envolver nesta luta. Não podemos ficar acomodados na cultura. Gravidez fora da idade tem consequências na saúde e na vida da criança. Hipotecar a vida da criança é colocar em causa o futuro da nação. A sociedade civil deve ser o nosso principal parceiro nesta luta”, advertiu.

Segundo dados do UNICEF. Mais de 700 milhões de mulheres casaram-se ou uniram-se maritalmente antes de 18 anos, em todo o mundo. A eclosão da Covid-19 pode agravar o quadro das uniões prematuras em Moçambique e no mundo uma vez que as raparigas estão em casa e as famílias enfrentam carências relacionadas com o abrandamento das actividades económicas e o confinamento.

Para mitigar esta situação, é necessário o envolvimento do Governo, sociedade civil e de todos os actores vivos da sociedade no combate a este mal.
Em tempos da Covid 19, há que continuar a educar as raparigas, sensibilizar os pais e toda comunidade sobre o impacto negativo das uniões prematuras.
É pertinente a disseminação de informação sobre os riscos que a pandemia representa na verificação dos direitos das crianças, sobre as medidas de prevenção que as raparigas devem tomar e a divulgação dos mecanismos de apoio e de denúncia de qualquer acto de violação dos direitos das crianças.

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